Artigos de opinião

Seaspiracy – Um problema real, uma comunicação irrealista

Tiago Carrilho | Biólogo Marinho

A televisão que temos em nossa casa, ainda hoje é apelidada por alguns, como uma janela para o mundo. Com a tecnologia atual, podemos ter acesso a uma grande quantidade de conteúdos, selecionados por nós, o que faz desta “janela” uma potente ferramenta de comunicação e informação.

Contudo, e apesar de podermos selecionar o que queremos ver, os conteúdos que consumimos deverão ser sempre alvo de algum espírito crítico pois podemos ser induzidos em erro ou ficar com falsas ideias relativamente a certos temas.

Temos hoje ao dispor imensos documentários que, por sua própria definição, são produções artísticas onde existe um compromisso com a realidade, mas que podem ou não representar na sua totalidade o mundo real. Com o aumento da oferta nas inúmeras plataformas que existem, surgem estratégias de comunicação para criar impacto e atrair o público.

Será que com estas estratégias ficamos mais próximos da realidade?

Em março de 2021, foi lançado o Documentário Original Netflix Seaspiracy: Pesca Insustentável, cujo objetivo seria o de sensibilizar as populações para o consumo alimentar de peixes e outros animais marinhos, que considero ainda não estarem suficientemente informadas sobre o tema.

A ideia transmitida de que temos que tornar o nosso consumo sustentável e responsável, fazendo alterações na forma como consumimos, está correta.

Poster do documentário Seapiracy

Mas será que devemos combater a falta de informação com desinformação e sensacionalismo?

Na minha opinião, a melhor estratégia de comunicação é a da abordagem ao problema, mostrando os dados científicos, estimulando o espírito crítico das pessoas e, acima de tudo, revelando as soluções para que assim que absorvam a mensagem, se sintam motivadas a agir.

Penso que ao longo de todo o documentário, nenhum destes pressupostos foi cumprido. Alguns dados científicos foram inclusive alterados. Assumindo que o documentário está comprometido com a realidade, poderiam e deveriam ter sido referidas mais organizações e projetos que trabalham com esta problemática há diversos anos. As soluções apresentadas induzem claramente o consumidor em erro e não são aplicáveis em todos os locais.

Como é natural, os documentários levam-nos muitas vezes a uma reação emocional, mas penso que esse sentimento deverá ser usado para remeter as populações para as soluções e não apenas para a visão de que tudo está errado. A emoção deverá ser criada com o objetivo de levar à ação e não apenas de culpabilização da espécie humana. Adicionalmente, creio que faltou uma certa sensibilidade cultural na abordagem do problema, visto que em toda a sua jornada, o produtor se centrou em países diferentes com realidades muito distintas. Não devemos cair no erro de assumir que aquilo que é o correto e possível na nossa realidade local se ajusta a todas as realidades.

A comunicação sensacionalista do documentário leva-nos a crer que tanto a pesca como a aquacultura estão erradas, não sendo possível a realização de nenhuma destas atividades de forma sustentável.

Será que não existe pesca e aquacultura sustentável?

A pesca e a aquacultura podem ser sustentáveis! Nos últimos anos tem sido feito um esforço para que em alguns locais sejam usados métodos mais eficazes no que diz respeito à sustentabilidade desta atividade.

Não podemos ignorar a diferença evidente entre o que é feito de forma local e o consumo massificado, mas este fator pode e deve levar os consumidores a fazerem escolhas responsáveis e a procurar sempre toda a informação possível sobre os produtos que consomem.

Mas afinal, este é um problema real?

Proteger os oceanos e a sua fauna é uma tarefa de proporções épicas, mas todos nós podemos fazer a diferença. Basta que façamos um consumo consciente e responsável. Em Portugal, quando compramos peixe fresco, podemos saber enquanto consumidores, a arte de pesca que foi usada na captura, a espécie, o tamanho e o local de origem. Com toda esta informação podemos fazer melhores escolhas e, acima de tudo, informadas.

A sobrepesca é uma ameaça real e deve ser levada a sério. No entanto, tem implicações diferentes em locais diferentes consoante as condições socioeconómicas das populações e, como tal, deve ser tratada como ameaça local e não global. Uma maior sustentabilidade ambiental implica também uma maior sustentabilidade social e económica, pelo que a solução para a sobrepesca deverá ser analisada como um todo. Apenas desta forma teremos a capacidade de enfrentar, de forma equilibrada, os desafios da sociedade para o futuro.

O acesso imediato e sem filtros que temos à informação através das “janelas” para o mundo, são um sinal da democratização da informação. Estamos constantemente a ser testados e ficamos tentados a acreditar em soluções únicas e verdades absolutas, no entanto, e para que não sejamos levados por isso mesmo, é fundamental ativar o nosso bem mais precioso, o espírito crítico!

Embora o documentário Seaspiracy: Pesca Insustentável tenha sido sem dúvida um alerta importante para todos nós, e que tenha trazido a discussão um problema real, não creio que tenha conseguido passar a mensagem emocional necessária à população, nem apresentado soluções para a criação de um mundo melhor.  Porque afinal, proteger os oceanos e o planeta é disso que se trata, a construção de uma Terra melhor para todos.

2 comentários

  • Ricardo Vitorino

    Caro Tiago,

    Gostava de comentar a seguinte afirmação da tua opinião sobre o documentário:

    “A sobrepesca é uma ameaça real e deve ser levada a sério. No entanto, tem implicações diferentes em locais diferentes consoante as condições socioeconómicas das populações e, como tal, deve ser tratada como ameaça local e não global.”

    É que o grande problema é que, tal como exosto no documentário, são as grandes potências do Mundo de hoje (UE, EUA e China), que estão a sobreexplorar os oceanos, em concreto junto às costas dos países que ainda praticam pesca em pequena escala ou mesmo de subsistênca.
    É claro que temos de adaptar os comportamentos a cada tipo de população. Da mesma forma que um habitante dos Alpes pode tranquilamente comer vaca que pastou ao ar livre sem peso de consciência, um habitante de Peniche pode fazer o mesmo relativamente às sardinhas que a frota da sua família apanhou. É na massificação do exagero da ingestão da proteína animal que reside o problema e onde poderíamos mudar comportamentos. Seria tão fácil!

    Obrigado.

    Ricardo Vitorino

    • Tiago Carrilho

      Caro Ricardo,

      Muito obrigado pelo teu comentário com o qual estou completamente de acordo. É na massificação que está o problema e a mudança poderia ser fácil, resta-nos continuar a tentar que aconteça.

      No documentário acho que não ficou claro a perspectiva local e que existem realidades muito distintas, por isso é que critico a forma de comunicação com que foi construído.

      Se ainda não viste aconselho o documentário também sobre pesca “The end of the line” de Rupert Murray.

      Ainda bem que há pessoas interessadas neste tema, mais uma vez obrigado pelo comentário.

      Um abraço,
      Tiago Carrilho

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